Comunidade médica teme que queda de Mandetta afrouxe isolamento social

Para o médico José Gomes Temporão, ex-ministro da Saúde, as decisões que serão tomadas a partir de agora vão definir a quantidade de mortos nas próximas semanas.

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - A comunidade médica teme que a demissão de Luiz Henrique Mandetta do Ministério da Saúde leve a um afrouxamento das medidas de isolamento social. Consideradas cruciais para que o sistema de saúde não entre em colapso com a pandemia de coronavírus, essas ações eram defendidas por Mandetta, mas criticadas pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido).

 Mandetta anunciou sua saída por meio das redes sociais, após uma novela cheia de troca de farpas e reuniões no Planalto nos últimos dias. Durante esse período, ele recebeu apoio de entidades médicas e científicas.

Para o médico José Gomes Temporão, ex-ministro da Saúde, as decisões que serão tomadas a partir de agora vão definir a quantidade de mortos nas próximas semanas.

Ele afirma que a esperança é de que o novo ministro da Saúde consiga manter uma equipe técnica robusta, reitere as medidas de isolamento social seguindo as estratégias da gestão do ex-ministro Luiz Henrique Mandetta e consiga o mínimo de autonomia em relação ao presidente.

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"Se ele fez algum acordo, se mudar de postura e tentar alguma solução heterodoxa, alguma flexibilização do retorno ao trabalho, teremos um resultado dramático em número de casos e e mortes e entraremos em colapso", disse à reportagem.

Para ele, existe hoje uma fratura no país: de um lado os que, como Mandetta, têm uma visão técnica, baseada em evidência, seguindo as diretrizes da OMS (Organização Mundial da Saúde) e o que acontece no resto do mundo, e a postura "irresponsável" de Bolsonaro, que vai contra isso tudo, criando um clima de muita insegurança na sociedade.

Assim como Temporão, o presidente do Conselho Nacional de Medicina, Mauro Ribeiro, elogiou o trabalho feito até agora pela pasta. Por outro lado, defendeu Bolsonaro.

"Esse momento é muito difícil. Tem uma equipe que estava fazendo um bom trabalho, existe a maior ameaça da história da sociedade brasileira [o coronavírus]. Independente do ministro e dos secretários, o ideal seria a continuidade. Mas não foi possível e o presidente teve que agir. Ele tem todo o nosso apoio", disse.

Ribeiro acredita que o sucessor, Nelson Teich, não fará mudanças bruscas neste primeiro momento. O grande desafio, diz, é criar uma política capaz de salvar todos os aspectos da sociedade, da saúde à economia, e saber a hora de sair do isolamento com segurança.

"Acreditamos que os próximos dois a três meses sejam período de maior dificuldade e maior sofrimento para a população. Acreditamos que as medidas tomadas pelo presidente e pelo ministro até aqui vão trazer impacto na curva de infectados e de mortalidade", completou.

O coordenador científico da Sociedade Brasileira de Infectologia, Sergio Cimermann, avalia que o oncologista Nelson Teich, que ocupará o cargo de Mandetta, pareceu ser uma pessoa bem informada e lhe chamou a atenção por sua visão econômica.

"Eu acho que foi uma questão política [que derrubou Mandetta] nesse momento. O que me deixa preocupado é se vamos ter a manutenção do isolamento horizontal, esse é primeiro ponto", disse.

Para ele, só será possível fazer análises com maior propriedade sobre o perfil do novo ministro a partir da semana que vem, quando Teich deve começar a atuar no cargo. Os efeitos de suas medidas deverão começar a aparecer daqui a 15 ou 20 dias. "No Brasil, infelizmente, essa questão política prevalece sobre a questão da saúde", completou.

A presidente da Associação de Medicina Intensiva Brasileira, Suzana Lobo, defende as medidas de isolamento como as únicas comprovadamente eficazes para conter o coronavírus e teme pelos efeitos de uma mudança no rumo das políticas públicas.

"É muito preocupante pensar que, em um momento de tanta fragilidade social e de saúde pública, você troque de jogador. Uma mudança de política de saúde pode ter um efeito totalmente imprevisível", disse.Concorda Yussif Ali Mere, presidente da Fehoesp (federação dos hospitais, clínicas e laboratórios do estado de São Paulo), para quem a substituição era tudo o que o setor da saúde não precisava nesse momento. "Agora temos uma crise política em cima da pandemia".

Ele espera que Teich apresente a mesma disposição de Mandetta de conversar com o setor, "sem dogmas e posições políticas extremadas".

Na avaliação de Temporão, embora o novo ministro venha do mercado privado e não tenha experiência no Sistema Único de Saúde (SUS), espera-se que ele, minimamente, ampare sua conduta observando os princípios da ciência e do conhecimento. "Seria muito inusitado ver um ministro da saúde aderir a um discurso que faça contraponto ao que Mandetta vinha defendendo."

Para ele, políticas sociais, econômicas e de saúde tinham que estar caminhando de uma maneira integrada e harmônica, como vários países, entre eles França, Portugal, Espanha, Reino Unido e Alemanha, estão fazendo.

Já para cirurgião Alexandre Ferreira Oliveira, presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Oncológica, o fato de ter sempre atuado na saúde suplementar não significa que o novo ministro não conheça o SUS, já que fez toda formação em instituições públicas e conhece as deficiências e as alternativas para melhorá-lo.

"Numa situação de crise como essa, precisamos de uma pessoa calma, de bom senso, que tenha uma visão ampla. Ele tem a característica de exercer a medicina mas tem o lado empresário. Sabe o impacto dessa crise na economia. Não existe nome melhor."

Ela acredita que vem a calhar um nome da oncologia. "Quando passar essa crise do coronavírus, ele terá que ter olhos para a oncologia no SUS. A gente busca a equalização do tratamento, que o paciente SUS tenha as mesmas condições de tratamento que o paciente privado."

O presidente da Sociedade Brasileira de Clínica Médica, Antônio Carlos Lopes, era crítico ao ex-ministro, que dizia ser alguém que falava bem, porém que tinha ambição política e pouco conhecimento técnico para ocupar o cargo.

"Precisa de alguém de muita experiência para saber onde se reduz, fazer uma estratégia de redução do planejamento horizontal, que tem que ser gradativa, e analisar onde se encontra a situação econômica do país", defende ele, que defende que Teich foi a melhor escolha possível.

A Associação Médica Brasileira disse, em nota, que participou de uma audiência com Bolsonaro e Teich, mais cedo nesta quinta, e que também apoiou a decisão de colocá-lo no cargo.

"É um nome que conta com nosso total apoio e pelo qual temos muita simpatia. Respeitado na classe médica, eminentemente técnico, gestor", disse o presidente da associação, Lincoln Lopes Ferreira.

O novo ministro disse que não tomará ações bruscas num primeiro momento e que é necessário buscar informações antes de realizar ações e que existe um "alinhamento completo" entre ele e Jair Bolsonaro.

Gilmar Fernandes do Prado, presidente da Academia Brasileira de Neurologia, também defendeu o ex-ministro e disse que ele orgulhou a classe médica, porém desafiou seu superior e, por isso, deixou o cargo."A mensagem [que o presidente passa ao demitir Mandetta] é simples. Bolsonaro não vai permitir que os integrantes de seu governo tenham voos independentes, ou sejam adversos a sua linha política. A saída de Mandetta é boa [para ele], pois, se houver uma piora do cenário, o que é previsto, ele terá o benefício de não ser responsabilizado, mantendo o mito da sua eficiência no imaginário das pessoas. Nesse ponto ele ganha. Politicamente", disse.

Após ter sua saída especulada no início deste mês, o ex-ministro recebeu apoio da comunidade médica e também de militares. Porém, desde então, os desentendimentos com Bolsonaro se agravaram.

No programa Fantástico, da TV Globo, ele chegou a dizer que o povo brasileiro não sabia qual autoridade ouvir por conta das constantes divergências. As declarações desagradaram também a ala militar do governo e o próprio Mandetta reconheceu ter ultrapassado um limite.

Um dos maiores pontos de desentendimento entre o presidente e o ministro foi de que forma aplicar o isolamento social. Bolsonaro defende que as medidas sejam mais leves, chegou a apoiar o isolamento vertical (no qual se isola somente os grupos de risco) e a reabertura do comércio.

O posicionamento causou desgaste também com governadores, como o de São Paulo, João Doria (PSDB), e o do Rio Janeiro, Wilson Witzel (PSL).

Mandetta também é crítico ao uso da hidroxicloroquina como medicamento para combater o vírus. Assim como outros subordinados que se desentenderam com Bolsonaro, foi fritado pelo presidente, criticado publicamente e excluído de decisões.

A diferença é que outros nomes que passaram pelo mesmo processo, como Paulo Guedes (Economia) e Sérgio Moro (Justiça), permaneceram no cargo.